Programa de asfaltamento contínuo chegou a Vila Brasília. Quando chegará ao Santa Rafaela?

segunda-feira, 25 de maio de 2009

SOCORRO


Rayane é uma menina de doze anos que mora ali. Ali, naquele bairro da periferia da cidade. Mora com a mãe, com a irmã Dyane, de oito anos, e com o padrasto. A casa é um pequeno barracão de dois cómodos, uma cozinha e um quarto. Na cozinha uma pequena cama. No quarto uma cama de casal. O banheiro fica do lado de fora.

Visitamos a casa, eu e Mônica. A mãe nos recebe com um sorriso e nos oferece um café. Dyane, sorrindo, sobe para o colo de Mônica e brinca alegre, com o colar de sementes que ela trás no pescoço. Rayane está encostada a parede de casa e não sorri. A sua cara é fria. Seus olhos mostram que o seu espírito está longe. Tentamos conversar com ela, mas ela não responde. A mãe diz para não ligarmos, que ela é assim mesmo, ignorante. O padrasto está no quintal a consertar a carroça e nem nos cumprimenta.

Agradecemos o café e saímos. Pelo caminho conversamos sobre Rayane. Que estranho, não fala, não sorri, não mostra qualquer expressão facial. O corpo estava ali, mas ela não.

No dia seguinte voltamos aquela casa. Rayane está sentada na porta de casa. Tem a mão entre as pernas, tentando esconder o que a pequena saia rasgada não consegue cobrir. Tem uma blusa de alças bem decotada, que já ajuda a adivinhar os pequenos seios. É uma menina, mas com o corpo de mulher a querer brotar.

Dayane, assim que nos viu, correu para nós e nos abraçou. Nos segurou pela mão e nos levou para dentro de casa. Rayane foi atrás e se encostou à parede, como no dia anterior.

“Minha mãe não está”, disse Dayane. Depois, na sua inocência, apontou a pequena cama onde estávamos sentados e disse: “Essa é a minha cama. Durmo aí com minha mãe”. Paramos e logo adivinhamos o que íamos ouvir de seguida. “Minha irmã e meu pai dormem no outro quarto”. Baixei a cabeça. Mônica olhou para Rayane e ela não desviou o olhar – “SOCORRO”.

E, por momentos, ficaram a olhar fixamente uma para a outra. Com o olhar, Rayane dizia: “É ali. É ali que ele se deita comigo todas as noites. É ali que ele me acaricia o peito e me beija na boca. É ali que ele coloca as mãos entre as minhas pernas e tira as minhas calcinhas para depois se lambuzar e abusar de mim até se sentir satisfeito. É ali que eu choro todas as noites. É ali, naquela cama, que eu perdi o meu sorriso”.

Saímos. Pelo caminho choramos. Choramos de angustia, de raiva, de impotência. Pela primeira e única vez na vida senti vontade de matar.

Fomos ao conselho tutelar. Conheciam o caso. A mãe negava. Por medo de perder o marido, por medo de perder a casa, por medo de perder as filhas, por medo de perder o alimento com que as alimentava, com medo que o marido as matasse. O Conselho tutelar conhecia o caso, mas não podia fazer nada. É apenas mais um das dezenas de casos naquela região. Dos milhares de casos na cidade. Além disso, falta tudo. Falta gente para trabalhar, faltam meios, faltam verbas, faltam soluções. Tirar ela dali para colocar aonde?

Perguntamos pelos vizinhos. Não falam, têm medo. Têm medo pelos seus filhos. Têm medo pelas suas vidas. Não deduram vizinhos.

Perguntamos pelo poder político. Da primeira vez prometeram ajudar. Da segunda vez não atenderam o telefone. Da terceira não estavam no gabinete. Da quarta já nem valeu a pena procurá-los.

Falamos com os professores. Fazer o quê? É apenas mais uma sentada no fundo de uma sala cheia.

Fomos para casa. Falamos da Rayane e do seu sofrimento. Fizemos uma oração por ela e fomos para a nossa confortável, acolhedora e segura cama. Não podíamos fazer mais nada por ela (será?). Antes de adormecer lá estavam presentes os olhos de Rayane com o seu pedido de socorro. Me lembrei que, naquela hora, o padrasto já deveria estar a abusar dela. Tirei dali o pensamento e me refugiei a pensar na minha família.

O tempo passou. Rayane tem agora dezesseis anos. Continua sem sorrir e só pensa em sair daquela casa. Sabe que só o poderá fazer se tiver dinheiro para se sustentar. E como ninguém lhe dá trabalho, ela começa a se deitar com os meninos do bairro. Com uns por um real, outros dão dois. Outros prometem, mas depois de a violarem fogem sem lhe pagar. Rayane chora e, por cada lágrima, um grito contido de socorro. Alguém lhe oferece um cachimbo, e ela fuma a primeira pedra de crack. Encontrou um refugio. Vicia na droga e começa a roubar.

Vem o tempo de campanha política. Candidatos a prefeito e a vereadores visitam o bairro. Ela olha e já nem tem forças para pedir socorro. O povo pede asfalto. Eles prometem o asfalto. O povo exulta e grita vivas. Rayane vira as costas e vai fumar.

Aparecem campanhas de luta contra o abuso sexual de crianças e adolescentes. Fazem-se colóquios, se discutem idéias, distribuem-se folhetos, se penduram faixas, fazem-se anúncios na TV. Rayane vê e diz: “É para mim, estou aqui. Socorro”. Mas, ninguém vê Rayane.

Rayane está grávida. O filho pode ser do padrasto, de um menino do bairro, do traficante, do caminhoneiro que para lá no posto perto de casa. A mãe a chama de vagabunda. O padrasto expulsou-a da sua cama. Agora dorme, por caridade, no chão de terra da cozinha. Quem agora dorme na cama do pai é a sua irmã Dayane.

Rayane vagueia pela cidade, mas ninguém a vê. É invisível.

Mas, Dayane deixou de sorrir... e pede socorro.

A história é verdadeira. É ali, naquele bairro da periferia da cidade onde, agora, Dayane pede socorro.

Será que não se consegue fazer nada de mais concreto e mais rápido para acabar com esse flagelo?

Dê a sua opinião e a sua idéia para combater esta realidade. Queremos ouvi-la.

4 comentários:

  1. Pelo que sei (das coisas que nos ensinam na faculdade de medicina, pois nunca tive a infelicidade de me deparar com algo brutal desta natureza), o médico (qualquer um) que SUSPEITAR de abuso de menores deve acionar o conselho tutelar imediatamente, dentro mesmo do serviço hospitalar, e a criança/adolescente provável vítima poderá permanecer no hospital até que se esclaresçam os fatos, não necessitando retornar ao ambiente onde está sendo investigado o abuso. Desta forma, meu conselho, de acordo com o caso relatado, seria o de encaminhar a menor a algum hospital e relatar o caso a um pediatra, ou qualquer outro médico. Como existe esta possibilidade do menor ficar no hospital e esta estadia 'custa caro', talvez seja este um meio de que o processo de denúncia até a apuração dos fatos se dê de forma mais rápida.

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  2. Pelo que sei (das coisas que nos ensinam na faculdade de medicina, pois nunca tive a infelicidade de me deparar com algo brutal desta natureza), o médico (qualquer um) que SUSPEITAR de abuso de menores deve acionar o conselho tutelar imediatamente, dentro mesmo do serviço hospitalar, e a criança/adolescente provável vítima poderá permanecer no hospital até que se esclaresçam os fatos, não necessitando retornar ao ambiente onde está sendo investigado o abuso. Desta forma, meu conselho, de acordo com o caso relatado, seria o de encaminhar a menor a algum hospital e relatar o caso a um pediatra, ou qualquer outro médico. Como existe esta possibilidade do menor ficar no hospital e esta estadia 'custa caro', talvez seja este um meio de que o processo de denúncia até a apuração dos fatos se dê de forma mais rápida.

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  3. Olá, muito bom o texto... Pena que sem a autoria... Mas assinar um texto desse tipo hoje em dia, infelizmente é complicação na vida. O jeito é o anomimato e o pseudônimo de "pagão". Afinal, somos todos pagãos. E, na minha opinião, para combater a exploração sexual infanto-juvenil, vejo apenas uma solução: melhorar as condições de vida das pessoas. Como fazer isso? Não sei. Através da ação dos políticos, não encontro resposta alguma. Apenas muita conscientização e direitos iguais para todos, sem hipocrisia.

    Saudações,

    João Renato Diniz Pinto - jornalista
    Montes Claros (MG)

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  4. Tatiana,

    O problema é que estes casos, infelizmente, nem sequer vão aos hospitais. É a própria família que esconde, pelas razões descritas no texto.

    João,

    Infelizmente estes casos acontecem em todos os escalões socioeconômicos. Mas, sem duvida, que isso melhoraria a situação. Eu acho que a solução está na defesa da vítima. Criar condições de refugio onde ela não possa ser perseguida.

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